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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A raiva da criança interior


A raiva  da criança interior

Muitos ainda têm viva dentro de si uma criança ferida. Nossos ferimentos podem ter sido causados pelo nosso pai ou nossa mãe.

 Eles repassaram o que sofreram quando crianças. Como não sabiam a forma de curar as feridas da infância, eles as transmitiram para nós.

Se não soubermos como transformar e curar nossos próprios ferimentos, vamos transmiti-los para nossos filhos e netos. É por isso que temos que voltar à crian­ça ferida que existe dentro de nós para ajudá-la a ficar curada.

Às vezes, essa criança precisa de toda a nossa atenção. Ela  pode emergir das profundezas da nossa consciência pedindo atenção.

 Se você estiver consciente, ouvirá a voz dela pedin­do ajuda. Quando isso acontece, é hora de desligar-se de tudo  em torno e voltar-se para dentro, acolhendo e abraçan­do carinhosamente a criança ferida dentro de você.

 Respire conscientemente dizendo: “Ao inspirar o ar, volto-me para mi­nha criança ferida; ao soltar o ar, cuido amorosamente da minha criança ferida.”

Você precisa praticar e se voltar para a sua criança ferida todos os dias, abraçando-a com carinho, falando com ela. E você também pode escrever uma carta para ela dizendo que reconhece sua presença e fará tudo que estiver ao seu alcance para curar seus ferimentos.

Quando eu falo que é preciso ouvir com compaixão, talvez vocês pensem que se trata apenas de escutar uma outra pes­soa. Mas também precisamos escutar a criança ferida dentro cie nós, pois ela está continuamente conosco.

E nós podemos curá-la a cada instante, neste exato instante.
“Minha querida criança ferida, estou aqui do seu lado e desejo intensamente ouvir você. Por favor, conte-me tudo sobre seu sofrimento, descreva toda a sua dor. Estou aqui, estou realmente escu­tando.”



Se você conseguir fazer isso e ouvi-la dessa maneira durante cinco ou dez minutos todos os dias, a cura certa­mente acontecerá. Quando subir uma bela montanha, con­vide sua criança interior para acompanhar você.

 Quando con­templar a beleza de um pôr-do-sol, convide-a para comparti­lhá-lo com você. Se fizer isso durante algumas semanas ou meses, sua criança ferida ficará curada.

A plena consciência é a energia que pode nos ajudar a realizar essa cura.

Descobrindo a verdadeira natureza da raiva

No momento em que você sente raiva, você tem a tendência de acreditar que seu sentimento foi criado por outra pes­soa. Você culpa esta pessoa por todo o seu sofrimento. Mas, ao fazer um exame profundo, você talvez perceba que a se­mente da raiva que existe em você é a principal causa do seu sofrimento.

 Muitas outras pessoas, quando confrontadas com a mesma situação, não ficariam com a raiva com que você fica. Elas ouvem as mesmas palavras, presenciam a mesma situação, mas são capazes de permanecer mais calmas, sem se deixarem afetar tanto pelas circunstâncias. Por que você se enraivece com tanta facilidade?

Talvez isso aconteça porque a semente da raiva é muito forte, e como você não praticou os métodos destinados a cuidar bem da raiva, a semente dela pode ter sido regada no passado com excessiva frequência.

 Todos temos uma semente da raiva nas profundezas da nossa consciência. No entanto, em alguns de nós, esta semente é maior do que nossas outras sementes - como a do amor e a da compaixão.

 A semente da raiva pode ser maior por não ter sido cuidada através da nossa prática no passado.

 Por isso, como já disse, quando começamos a cultivar a ener­gia da plena consciência, a primeira coisa que percebemos com clareza é que a principal causa do nosso sofrimento, da nossa aflição, não é a outra pessoa, e sim a semente da raiva que existe em nós.
Nesse momento, paramos de considerar a outra pessoa culpada do nosso, sofrimento. Compreendemos que ela é apenas uma causa secundária.

Você sente um enorme alívio ao descobrir isso e começa a se sentir muito melhor. Mas a outra pessoa pode ainda estar sofrendo porque não aprendeu a cuidar da própria raiva. Quando isso acontece, está na hora de ajudar o outro.

Oferecendo ajuda em vez de punição

Quando não sabemos lidar com o nosso sofrimento, deixa­mos que ele se derrame sobre as pessoas que estão em volta. Quando você sofre, faz com que as pessoas ao seu redor também sofram. Isso é bastante natural.

 É por esse motivo que temos que aprender a lidar com o nosso sofrimento, para não o espalharmos em torno de nós.

Quando você é o chefe da família, por exemplo, você sabe que o bem-estar dos seus familiares é extremamente impor­tante. Como você tem compaixão, não permite que seu sofri­mento afete os que estão à sua volta.

 Você pratica e aprende a lidar com seu sofrimento porque sabe que nem ele nem sua felicidade são uma questão individual.

Quando você está com raiva e não quer lidar com ela, fica sem defesa, sofre, e também faz as pessoas à sua volta sofrerem
Sua primeira reação é achar que a pessoa que causou a raiva merece ser punida.

Tem vontade de castigá-la porque ela fez você sofrer. Mas, depois de praticar durante dez ou quinze minutos a respiração, a meditação andando e o olhar consciente,  você compreende que ela precisa de ajuda e não da punição. Esta é uma percepção justa.

Esta pessoa pode ser alguém muito próximo a você - sua esposa, seu marido, algum dos filhos. Se você não ajudá-la, quem o fará?

Depois então de acolher e abraçar a raiva, sentindo-se a mil o melhor, você nota que a outra pessoa continua a sofrer.

Esta percepção gera em você um movimento em direção a ela, num grande desejo de ajudá-la. Trata-se de uma forma completamente diferente de pensar e de sentir, pois o desejo de punir simplesmente desapareceu. A raiva se transformou em compaixão.

A prática da plena consciência nos torna mais atentos e mais perspicazes. Esta capacidade de discernimento é fruto da prática que pode nos ajudar a perdoar e a amar.

 Num período de quinze minutos, ou de meia hora no máximo, a prática da plena consciência, da concentração e do discernimento é capaz de libertar você da raiva, enchendo seu ser de amor.

Interrompendo o ciclo da raiva
Um menino de doze anos costumava vir todo verão a Plum Vlllage para praticar os ensinamentos com outros jovens.

Ele linha problemas com o pai, porque sempre que cometia um erro ou caía e se machucava, em vez de ajudá-lo, o pai grita­va com ele e o agredia verbalmente: “Garoto idiota! Como pôde fazer uma coisa dessas com você mesmo?”

 Era impossível para o menino ver no pai um ser amoroso ou bondoso. Ele prometia a si mesmo que, quando crescesse e tivesse filhos, nunca trataria as crianças daquele jeito.

 Se seu filho estivesse brincando e se machucasse e sangrasse, ele o abra­çaria e consolaria.
Na segunda vez que o menino veio a Plum Village, ele trouxe a irmã mais nova. Ao brincar com outras meninas, ela caiu, bateu com a cabeça numa pedra e o sangue começou a escorrer por seu rosto.

 De repente, o garoto sentiu a energia da raiva começando a se manifestar e viu-se prestes a gritar com a irmã, dizendo: “Que garota idiota! Como pôde fazer uma coisa dessas com você mesma?”

Ele estava quase repetindo o que seu pai havia feito Com ele. Mas como já praticara os ensinamentos’, em Plum Village durante dois verões, ele conseguiu parar a tempo.

Em vez de gritar, começou a praticar o andar e a respiração conscientes, enquanto outras pessoas ajudavam sua irmã. Passados apenas cinco minutos, ele experimentou um momento de iluminação.

 Percebeu que a reação que tivera - a raiva - era uma espécie de energia do hábito que lhe havia sido transmitido pelo pai. O menino não queria tratar a irmã daquele jeito, mas a energia transmitida pelo pai era tão forte que ele quase fez exatamente a mesma coisa que o pai fazia com ele.

Para um menino de doze anos, foi um despertar e tanto. Ele continuou a andar e a respirar de forma consciente, sen­tindo um desejo intenso de prosseguir naquela prática para transformar a energia do hábito e não transmiti-la aos seus próprios filhos.

 Ele sabia que somente a prática da plena consciência poderia interromper esse ciclo de sofrimento.

O menino conseguiu perceber que o pai também era víti­ma da transmissão da raiva. O pai talvez não quisesse tratá-lo daquela maneira, mas a energia do hábito era forte demais, e o pai não tinha consciência disso.

Ao compreender o que acontecia, toda a raiva que o menino sentia desapareceu e ele teve vontade de voltar para casa, conversar com o pai e convidá-lo para praticar com ele. Para um jovem de doze anos, esta foi uma percepção muito grande.

Um bom jardineiro
Quando você entende o sofrimento da outra pessoa, você é capaz de transformar seu desejo de punir, passando apenas a querer ajudá-la. Quando isso acontece, você sabe que sua prática teve êxito. Você é um bom jardineiro.

Dentro de cada um de nós existe um jardim, e cada prati­cante precisa voltar para dentro de si mesmo e cuidar dele. Talvez no passado você tenha se dado conta disso.

 Agora, então, precisa saber o que está acontecendo no seu jardim e procurar colocar tudo em ordem. Restaure a beleza e restabe­leça a harmonia do seu jardim. Muitas pessoas se encantarão com seu jardim se ele for bem cuidado.

Cuidando de nós mesmos, cuidando dos outros
Quando éramos crianças, aprendemos a respirar, a andar, sentar, comer e falar. Fizemos tudo isso instintivamente, sem pensar.

O que eu proponho agora é que tomemos consciên­cia dos nossos atos para renascermos espiritualmente. Para isso, temos que aprender a respirar de novo, de um modo consciente.

 Aprender a andar de novo, conscientemente. Aprender a ouvir de novo, com consciência e compaixão. Aprender a falar de novo, com a linguagem do amor, para honrar nosso compromisso original.

 Dizer a nossa verdade, com respeito e suavidade, e acolher a do outro:* “Meu amor, estou sofrendo. Estou com raiva. Quero que você saiba dis­so.” Esta frase expressa a fidelidade ao nosso compromisso. “Meu amor, estou fazendo o melhor que posso. Estou cuidan­do da minha raiva. Para o meu bem e para o seu. Não quero explodir, destruir a mim e a você...

 Estou fazendo o melhor que posso.” Esta lealdade provocará respeito e confiança na outra pessoa. E finalmente diremos: “Meu amor, preciso da sua ajuda.” Esta é uma declaração muito poderosa, porque, quando estamos com raiva, geralmente temos a tendência de dizer: “Não preciso de você, não quero te ver pela frente.”

Se você puder dizer as três frases anteriores com sincerida­de, do fundo do coração, o outro passará por uma transfor­mação. Não duvide dos efeitos dessa prática.

 Com o seu com­portamento, você consegue influenciar a outra pessoa e incen­tivá-la a começar a praticar. Ela pensará e sentirá:

 “Meu par­ceiro está sendo fiel falando a verdade. Ele está de fato tentando fazer o melhor possível. Preciso fazer a mesma coisa.”

Isso significa que, quando cuidamos bem de nós mesmos, estamos cuidando bem da pessoa que amamos. O amor por nós mesmos é a base da nossa capacidade de amar o outro.

Se não cuidamos bem de nós mesmos, se não estamos felizes e tranquilos, não podemos fazer a felicidade de mais nin­guém.

Não podemos ajudar nossos seres queridos, não po­demos amá-los. Nossa capacidade de amar uma outra pessoa depende totalmente da nossa capacidade de amar e cuidar bem de nós mesmos.

Como se tornar uma pessoa livre
Um minuto de prática é um minuto em que geramos a energia da plena consciência. Ela não vem de fora e sim de dentro de nós. A energia da plena consciência é a energia que nos ajuda a estar totalmente presentes no aqui e agora.

 Quando você toma chá com plena consciência, seu corpo e sua mente desfrutam uma perfeita união. Você é real e o chá que bebe também se torna real. Quando sua cabeça está cheia de projetos e preocupações, você não está realmente tomando seu café ou seu chá. Você está bebendo seus projetos e preocupações.

 Você não é real, nem o café ou o chá são verdadeiros. Seu chá ou seu café só podem se reve­lar como uma realidade total quando você se voltar para o seu eu e estiver plenamente presente, libertando-se do passa­do, do futuro e das preocupações.

 Quando você tem cons­ciência de si e do seu momento presente, o chá também se torna real e o encontro entre você e o chá é real.

Existe a meditação do chá que oferece a você e seus ami­gos a oportunidade de se exercitarem na prática de estar real­mente presentes, concentrando-se na xícara de chá e gozan­do plenamente tudo o que ela tem a oferecer - sabor, per­fume, calor.

Concentrando-se e usufruindo a companhia uns dos outros. A meditação do chá é uma prática destinada a nos libertar. Se você ainda sofre as limitações e perseguições do passado, se ainda tem medo do futuro, se se deixa levar pela ansiedade e pela raiva, você não é uma pessoa livre.

 Não está totalmente presente no aqui e agora, de modo que a vida não está disponível para você. O chá, a outra pessoa, o céu azul, a flor não estão à sua disposição. Para que você possa real­mente viver, para que consiga tocar profundamente a vida, você precisa ser livre. Cultivar a plena consciência ajuda você a se libertar.

A energia da plena consciência é a energia de estar presente. Corpo e mente unidos. Quando pratica a respiração consciente ou o andar consciente, você se liberta do passado, futuro, dos seus projetos, das suas preocupações, e passa a ar presente e a viver totalmente.

 A liberdade é a condição fundamental para você tocar a vida, tocar o azul do céu, as árvores, os pássaros, o chá e a outra pessoa. É por isso que a pratica plena consciência é tão importante. E não pense  que você precisa treinar durante muitos meses para conseguir  fazer uma hora de prática por dia ajuda a ser mais consciente.

Exercite-se tomando conscientemente seu chá, seu café, saboreando o gosto, aspirando o perfume, sentindo na mão o calor na sua cara, e, durante esse processo, transforme-se numa pessoa livre. Exercite-se para se tornar uma pessoa livre enquan­to prepara o café da manhã, ao tomar banho, ao vestir-se.

 Quando andar pela rua, quando arrumar a casa. Ao acordar, em vez de deixar-se assaltar pelas preocupações, sinta e usufrua a maciez dos lençóis, perceba a claridade que entra pela janela. Qualquer momento do dia é uma oportunidade para você exercitar a plena consciência e gerar essa energia.

Meu amor, sei que você está aqui me sinto muito feliz'' 

Através da plena consciência, você é capaz de tomar profundo contato com o que existe no momento presente, inclusive com a pessoa que você ama. O fato de conseguir dizer ao seu ente querido “Meu amor, sei que você está aqui e me sinto muito feliz" demonstra que você é uma pessoa livre.

 Prova que você tem a mente atenta, que possui a capacidade de va­lorizar e apreciar o que está acontecendo no momento presente. O que acontece no agora é a vida que pulsa em seu ser na pessoa que você ama, e que está viva, diante de você.

Quando você abraça a outra pessoa com a energia da plena consciência, olhando para ela e dizendo “Meu amor, acho maravilhoso você estar aqui ao meu lado. Isso me deixa muito feliz”.

 Isso causa a sua felicidade .e a felicidade do outro, porque ele sente como é real o sentimento que você expres­sa. É diferente de abraçar automaticamente, dizendo palavras convencionais que não vêm da plena consciência da presença do outro e do valor dessa presença.

Quando conseguimos estar plenamente com o outro, a possibilidade de ficarmos com raiva é muito menor. Quando se zangar ou sentir raiva, respire ou ande conscientemente durante dois minutos para se restabelecer no aqui e agora, para viver de novo. A outra pessoa pode estar dominada por preocupações, raiva e ansiedade, mas você pode salvá-la, e salvar-se, através da plena consciência.
Texto de Thich Nhat Hanh
Pesquisado por dharmadhannya

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